O que desaba primeiro, o mundo ou a perceção que temos dele?
Vivemos numa época marcada por sucessivos abalos: pandemias, catástrofes naturais, incêndios, desastres tecnológicos, rupturas nas estruturas familiares, que abalam a sensação de estabilidade e segurança que sustenta a vida quotidiana.
Cada crise desperta uma vulnerabilidade profunda, tanto individual como coletiva, revelando o quanto a nossa confiança num mundo previsível é cada vez mais frágil. Estes acontecimentos são factos concretos, mas também são experiências simbólicas de queda. Quando estruturas físicas, sociais ou emocionais colapsam, aquilo que rui é também a nossa perceção de continuidade e controlo.
A repetição de crises gera um trauma coletivo, que ecoa na psique social sob a forma de medo, desconfiança e incerteza quanto ao futuro.
O trauma, segundo o DSM-5 (2013), é a resposta a uma experiência que ultrapassa a capacidade de integração psíquica. Pode manifestar-se por revivescências, hipervigilância, evitamento ou alterações no humor e na perceção do mundo. Estes sintomas podem parecer fraquezas, mas na realidade são tentativas da mente e do corpo de se protegerem do insuportável.

Na literatura e na mitologia, encontramos imagens que ajudam a compreender estas vivências.
Em Os Lusíadas (Camões, 2024) o Adamastor surge como símbolo do encontro entre o humano e o incontrolável: a força que desafia a arrogância e impõe o confronto com o medo. Este gigante representa o lado sombrio da experiência humana: o limite, a perda e o desconhecido. Como também o portal para a transformação. Tal como os navegadores que o enfrentaram, também nós, diante das nossas crises modernas, precisamos de coragem para atravessar os “cabos das tormentas” da existência.
Na minha experiência clínica, é frequente observar que eventos traumáticos, apesar do seu impacto devastador, muitas vezes funcionam como pontos de rutura, abrem fissuras no ritmo automático da vida e permitem, por vezes, o acesso a conteúdos internos até então silenciados. São experiências que interrompem, desorganizam, mas que também obrigam a repensar, a reajustar, a reconstruir. O caos pode conter, paradoxalmente, um impulso de reorganização.
…eventos traumáticos, apesar do seu impacto devastador, muitas vezes funcionam como pontos de rutura, abrem fissuras no ritmo automático da vida…
Na prática clínica, é comum observar que, por mais dolorosas que sejam, situações traumáticas podem funcionar como pausas forçadas. Uma espécie de travagem brusca que nos obriga a olhar para dentro. São momentos em que o caos exterior reflete um tumulto interior, mas também abre espaço para reavaliar escolhas, crenças e caminhos.
Às vezes, é justamente nesses períodos difíceis que surge a possibilidade de transformação, de reencontro com o essencial.

Ninguém deseja o caos. Ele chega sem convite, desorganizando rotinas, certezas e estruturas que pareciam sólidas. Pode surgir como uma doença, um incêndio, uma perda, ou mesmo um acidente inesperado. E, quando chega, raramente há tempo para compreender: a primeira resposta é o susto, o medo, a tentativa de voltar ao “normal” o mais depressa possível.
Mas o caos também pode ser uma paragem necessária. Algo que suspende o movimento automático da vida e cria espaço para perguntas que não costumamos fazer:
- Como é que cheguei aqui?
- O que é que ainda faz sentido?
- O que é que preciso largar?
Em psicologia, especialmente no contexto de terapia, verifico com frequência que é justamente nas crises que muitas pessoas começam a escutar a si mesmas de forma mais verdadeira. O caos, paradoxalmente, pode trazer clareza. Ao desestruturar, ele obriga a reestruturar. Pode expor feridas antigas, mas também revelar forças esquecidas. É um ponto de viragem: nem sempre desejado, mas muitas vezes necessário.
Como escreveu Jung (2011), “não nos tornamos iluminados imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão.” O trauma, quando reconhecido e acolhido, pode revelar forças antes adormecidas e tornar-se uma oportunidade de crescimento pessoal e coletivo.
Referências Bibliográficas:
American Psychiatric Association (2013). DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
Camões, L. de (2024). Os Lusíadas. Porto Editora.
Jung, C. G. (2011). Psicologia e Alquimia. Bertrand.
Jung, C. G. (2011). Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes


