Do toque ao “like”: a nova intimidade na era digital
Será o mundo digital uma ameaça aos relacionamentos entre casais?
A virtualidade da era digital em que vivemos tem exercido um claro impacto e mudanças na forma como nos relacionamos e convivemos com outras pessoas.
Este impacto estende-se a vários contextos socio ocupacionais e culturais da sociedade e do nosso dia-a-dia. Contudo as tecnologias digitais têm tido uma evidente e forte participação nas manifestações que concernem aos relacionamentos amorosos, conjugais ou simplesmente entre casais, ao estarem cada vez mais presentes nos mesmos. E importa desde já, que sendo esta uma abordagem à nossa contemporaneidade, consideramos atualmente um casal, não exclusivamente aqueles que se encontram em situação conjugal, mas também aqueles que se encontram numa união entre duas pessoas baseada em laços de proximidade, afinidade e afeto.
…as tecnologias digitais têm tido uma evidente e forte participação nas manifestações que concernem aos relacionamentos amorosos…
O impacto e influência das redes sociais nos relacionamentos contemporâneos tem-se tornado um tema, e de forma preocupante, recorrente nas consultas. As redes sociais, os chats conversacionais têm surgido de forma frequente como um motivo para conflitos interrelacionais, maior insatisfação nas relações, e mais insegurança a nível individual, mas também em relação ao outro e na relação com o outro.
Não obstante, existe a outra face da moeda. As novas tecnologias de comunicação e a nova era digital tem os seus encantos e maravilhas: tudo se tornou mais fácil, tudo se tornou mais rápido, mais acessível e talvez próximo. E nesta comunicação tão eficiente e eficaz, ainda assim o digital retirou-nos elementos primordiais das relações e da comunicação (em particular) como a informação não verbal, a linguagem clara e objetiva, o espaço/contexto de intimidade e privacidade, a presença, o toque, entre outros.
Os relacionamentos saudáveis para se fundamentarem nas suas bases, se construírem e subsistirem, carecem de um espaço de intimidade e privacidade.
Espaço esse no qual é seguro sermos quem realmente somos e sentirmos, assim como nos expressarmos. É nesse espaço que se criam as oportunidades para que o foco de dois indivíduos que se relacionam esteja no interno. As redes sociais, colocam o foco no externo: não importa a forma como nos vemos, importa a forma como os outros nos vêm. Em vez de perguntarmos “como estamos?” um com o outro, passamos a perguntar “como parecemos um com o outro?”. E assim começamos a deixar que a intimidade comece a ser um evitamento, deixamos que a nossa relação não tenha morada num espaço privado (que é precisamente onde a intimidade cresce). Na medida em que queremos ser vistos pelos outros (não apenas enquanto um casal, mas também enquanto indivíduos aos olhos do(a) nosso(a) companheiro), queremos ser vistos pelo “mundo”, e esta audiência passa rapidamente a ser um terceiro elemento silencioso e muitas vezes tóxico na relação.
A forma como muitas pessoas num relacionamento “medem” o quanto o outro gosta delas passa a ter uma métrica distorcida. Como se estivesse criada uma nova linguagem de paixão ou amor virtual: número de mensagens vistas (respondidas e não respondidas), número de likes nas fotos, declarações públicas de afeto em forma de comentários, fotos a dois que mostram a vontade de assumir um compromisso, quem e quantos(as) seguem o outro, etc.
…queremos ser vistos pelo “mundo”, e esta audiência passa rapidamente a ser um terceiro elemento silencioso e muitas vezes tóxico na relação.
De repente vivemos em duas realidades paralelas: uma na qual de facto existimos e outra na qual representamos. E o grande perigo é que na realidade que representamos, aquela que está publicada nas redes sociais, é a que nos dá uma falsa sensação de controlo da narrativa, como se a relação fosse um “script”. E naturalmente ambicionamos um conto de fadas que não é vivido nem sentido, apenas contado e partilhado, e através do qual a validação se foi tornando um processo viciante. Mais. E pior. Se seguirmos esse script, já não discutimos ou evitamos o conflito porque ele não cabe na narrativa, sorrimos e fingimos que estamos felizes quando há tensão latente, “desamigamos”, deixamos de seguir e até bloqueamos quem pode representar um intruso inoportuno ou incomodo a essa narrativa, como se as pessoas pudessem deixar de existir, ou como se o passado fosse um apagão. Procuramos mais suporte emocional nos posts de pessoas que admiramos e seguimos, do que na pessoa que se senta no sofá ao nosso lado. Mais depressa pedimos ajuda ao ChatGPT sobre como saber se o(a) parceiro(a) está a trair, do que simplesmente nos sentamos e olhando nos olhos perguntamos diretamente à pessoa que está ao nosso lado.
As novas tecnologias e o digital não trouxeram apenas esta mudança: em que o “desempenho” ou a “performance” no digital substitui a presença na relação. Também conceitos basilares de qualquer relação como a confiança, têm vindo a ser extremamente adulterados.
Pergunto-me se no contexto do digital, muitos casais não confundem confiança com controlo?
Pedir o acesso à conta do outro, decidir ter contas partilhadas, inspecionar a lista de seguidores, rastrear o número de likes em fotos de companheiros(as) anteriores, avaliar se aquela foto não está a ser ousada de mais e “a pedir a atenção” de terceiros, verificar se está online para arranjar uma justificação a uma mensagem não respondida, e muitos outros exemplos poderiam ser citados.
Inevitavelmente uma grande fatia do funcionamento social, irá sempre basear-se na confiança básica na qual o outro se compromete reciprocamente no cumprimento de regras, e nos relacionamentos de casais não é diferente. É um jogo a dois, o que significa que ter um relacionamento é viável com a existência e utilização no digital, sendo que é fundamental que o foco esteja primordialmente em cada uma das partes envolvidas respeitando essa confiança base, nunca controlando. Aliás o controlo do(a) parceiro(a) nas redes é um fator que gera ansiedade, e está longe de acalma-la.
…ter um relacionamento é viável com a existência e utilização no digital, sendo que é fundamental que o foco esteja primordialmente em cada uma das partes envolvidas respeitando essa confiança base…
Claro que por vezes os relacionamentos são atropelados por fatores externos, que podem trazer ciúmes, conflitos, inseguranças. Um pedido de amizade, um(a) novo (a) seguidor (a), um comentário ou um emoji dúbio. Na tentativa de tentar gerir estas situações, alguns casais adotam perfis compartilhados em que ambos têm acesso a todos os conteúdos e adicionam as pessoas com conhecimento de ambos. E o curioso é que este comportamento pode traduzir-se num efeito aparentemente securizante na relação, mas muito provavelmente não irá eliminar o ciúme ou a desconfiança. Estes são temas que devem ser abordados na privacidade e intimidade do casal, na exposição da vulnerabilidade de fundo, através do diálogo, em que ambos possam verbalizar medos, inseguranças e até traumas passados.
Ouço muitos pacientes falarem no “Ghosting” (termo do digital que significa desaparecer). Até quando queremos terminar um relacionamento, queremos simplesmente “deixar de existir” para alguém: basta uma mensagem, um novo perfil, um simples bloqueio, para desconectarmo-nos de uma relação onde provavelmente já não havia conexão.
Sem dúvida que pode ser uma atitude mais confortável, do que suportar a angústia resultante de enfrentarmos os nossos sentimentos e de quem está connosco, e isso não vem de agora, mas agora tornou-se mais fácil com as novas tecnologias. E nesse sentido não há amadurecimento emocional, não há responsabilização, não há a crueza que a vida real carece e da qual nunca iremos poder escapar mesmo quando estamos 24horas do dia online.
Se o digital é uma realidade altamente manipulada, e se quando nos relacionamos com perspetivas de um futuro a dois a longo prazo, onde depois da paixão construiremos amor, então, como construímos algo que é real como o amor, que doí, que ás vezes é feio, se insistimos em viver numa realidade em que tudo é controlado para ser apreciado e validado pelo outro?
As redes sociais obrigam-nos a refletir na forma como podem estar a alterar a natureza dos relacionamentos atualmente, na medida em que simultaneamente as mesmas têm vindo a tornar-se um espaço fundamental na constituição do sujeito.
Devemos inquietar-nos com as fronteiras que, subjetivamente e intersubjetivamente, construímos nos nossos relacionamentos e posteriormente são externalizadas no social digital? Sim. Talvez.
A comunicação num relacionamento será sempre uma chave mestra, num contexto de múltiplas ferramentas, mas que ainda assim manterá o seu estatuto de aspeto mais desafiador nos nossos relacionamentos interpessoais. O contexto terapêutico seja individual, seja para casais, será uma ferramenta extremamente importante para explorar outros elementos valorativos das relações humanas (que conscientemente ou não estão quase sempre em cena), e que consequentemente podem ditar aqueles que são os verdadeiros encontros e desencontros numa relação. E as relações são mesmo isso: um campo complexo de tramas psíquicas inter-individuais, objeto das projeções, de padrões familiares, influências socioculturais, entre outros aspetos dignos de uma contínua análise. Mas também serão sempre um campo fértil para o auto-conhecimento e crescimento pessoal.
Referências Bibliográficas:
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Hintz, H. C., Trindade, M. C., Halpern, S. C., Toschi, J., & Bronzatti, G. M. (2014). O monstro dos olhos verdes no ciberespaço: ciúme e redes sociais. In T. Almeida & (Ed.) (Eds.), Relacionamentos amorosos: o antes, o durante… e o depois. (pp. 159-181). São Paulo: PoloBooks.
Pereira, F. A., & Fantinel, A. L. (2016). A influência das redes sociais nas (re) significações do amor e dos relacionamentos: uma breve análise de uma tira e uma charge e aplicações para o ensino. Temática, 12(2).
Perel, E. (2024). (In)fidelidade: Repensar o Amor e as relações. Trad. Paulo Tavares, Sara M. Felício. 1ª Edição. Lisboa.
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