Adultização nas redes: um desafio global para a proteção da infância
Recentemente, um vídeo do criador de conteúdo Felca, amplamente partilhado nas redes sociais no Brasil, reacendeu o debate sobre a adultização de menores. O impacto da publicação deu visibilidade a um problema que, embora não seja novo, ganha novas proporções no contexto digital.
Este fenómeno levanta questões urgentes: como estão a ser educadas as nossas crianças? Os pais sabem realmente o que é mais importante para elas? Quem são os seus modelos?
Na psicologia, Bandura (1977) descreve a modelagem como o processo pelo qual aprendemos ao observar e imitar figuras significativas. No passado, essas figuras eram principalmente familiares, professores ou membros da comunidade; hoje, incluem influenciadores e criadores de conteúdo que conquistam a atenção juvenil através de algoritmos e viralização.
O ecossistema digital evolui a um ritmo que dificulta o acompanhamento parental. Reconhecer essa limitação implica reforçar a vigilância, o diálogo e a orientação. A internet é um território vasto e, por vezes, hostil. Ignorar essa realidade expõe crianças a riscos que vão desde a pressão estética a comportamentos perigosos, como práticas auto-lesivas promovidas em grupos online (Daine et al., 2013; Marchant et al., 2017). O sentimento de pertença e a identidade grupal, conceitos centrais na teoria da identidade social de Tajfel e Turner (1986), podem, segundo estes autores, exercer uma influência tão forte que se sobrepõe ao pensamento crítico nesta fase do desenvolvimento.
A internet é um território vasto e, por vezes, hostil. Ignorar essa realidade expõe crianças a riscos que vão desde a pressão estética a comportamentos perigosos, como práticas auto-lesivas promovidas em grupos online
A adultização digital é um fenómeno global que também se manifesta em Portugal. O relatório EU Kids Online Portugal (Ponte et al., 2021) mostra que uma percentagem significativa de crianças entre os 9 e os 12 anos utiliza redes sociais, apesar da idade mínima de 13 anos estabelecida na maioria das plataformas. O Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas (2021) alerta que essa exposição precoce aumenta a vulnerabilidade a padrões sociais irreais e a riscos como cyberbullying e contacto com desconhecidos.
Diversos estudos têm demonstrado que a adultização precoce e a exposição a conteúdos prejudiciais têm impacto negativo no desenvolvimento e na saúde mental. A American Psychological Association (2007) associou a sexualização precoce a problemas de autoestima e sintomas depressivos, bem como para o aumento da ansiedade e insatisfação corporal. Por outro lado, Peter & Valkenburg (2016) indicam que a exposição a conteúdos sexualizados acelera comportamentos sexuais, afetando o bem-estar emocional.
Então, como podemos ajudar as crianças e jovens a usar a internet de forma segura e saudável?
O que dizem os psicólogos e psicoterapeutas da Clínica Dra. Rosa Basto
Na perspetiva dos profissionais da nossa equipa, proteger crianças e jovens na internet exige uma abordagem prática, consistente e adaptada à realidade de cada família. A Dra. Margarida Figueiredo defende que o diálogo aberto e sem rodeios é essencial, criando um espaço seguro onde os filhos possam partilhar situações suspeitas ou desconfortáveis. A Dra. Carla Alves reforça que proibir sem explicar é ineficaz; diz ser essencial incentivar rotinas equilibradas, com atividades físicas e tempo de qualidade offline, para reduzir a dependência digital. A Prof. Doutora Daniela Nascimento propõe compreender o fascínio que a internet exerce, discutindo riscos e benefícios sem julgamentos e promovendo competências de autorregulação e consciência crítica. Já a Dra. Catarina Monteiro lembra que o exemplo parental é determinante, as crianças observam e imitam a forma como os adultos utilizam as redes sociais. E o Dr. Nelson Oliveira sublinha a importância de medidas básicas como bloqueios parentais e limites claros para o tempo de ecrã.
Estas recomendações vêm de profissionais que, além de psicólogos e psicoterapeutas, são – em muitos casos – também pais. Pessoas que lidam de perto e todos os dias com esta realidade, dentro e fora dos consultórios.
Partindo dessa experiência vivida, abrimos agora o olhar para uma perspetiva mais abrangente, onde o papel da família se revela absolutamente central. O relatório EU Kids Online Portugal (Ponte et al., 2021) recomenda conversas abertas sobre identidade e segurança digital, definição de limites de tempo de ecrã, promoção de atividades offline e exemplo parental no uso consciente da tecnologia. Além disso, a promoção da literacia digital crítica, incentivando crianças a compreender e questionar o conteúdo que consomem, é fundamental para reduzir riscos e potenciar benefícios do uso das tecnologias. É urgente lembrarmo-nos que a pressão estética e de performance molda a autoimagem juvenil, potenciando perturbações alimentares, ansiedade social e baixa autoestima (Fardouly et al., 2015; Mabe et al., 2014). A OMS (2020) sublinha que a promoção da saúde mental implica ambientes que valorizem diversidade, autoaceitação e competências graduais. Espaços de socialização offline, práticas desportivas e atividades artísticas podem ajudar a equilibrar a influência do ambiente digital.
É urgente lembrarmo-nos que a pressão estética e de performance molda a autoimagem juvenil, potenciando perturbações alimentares, ansiedade social e baixa autoestima
Então de quem é a responsabilidade para mitigar estes efeitos?
Diria que é coletiva, se tivermos em conta o Plano para a Década Digital 2030 da União Europeia. Este Plano destaca a proteção online das crianças como prioridade e incentiva os Estados-Membros a criar políticas públicas que reforcem a segurança digital. Assim, a responsabilidade é das plataformas digitais no sentido de reforçar mecanismos de moderação e segurança; É também das escolas, na medida em que podem integrar a literacia digital e emocional nos currículos; E é naturalmente das famílias, mantendo a presença ativa e diálogo constante, lembrando que o consumo consciente de conteúdos é outro elemento-chave. Cada interação online molda o algoritmo e o que se torna visível. Ao escolher conteúdos educativos e positivos, os utilizadores contribuem para reduzir a visibilidade de materiais prejudiciais. Esta mudança de paradigma, embora gradual, depende do envolvimento de todos.
Garantir que a infância seja vivida no tempo certo, com espaço para brincar, aprender, errar e crescer, exige um esforço contínuo e transversal. Pode parecer tentadora a ideia de afastar os mais novos do mundo atual, mas isso nunca os vai fazer crescer. A ideia é proporcionar-lhes as ferramentas e o apoio de que necessitam para o explorar e interagir nele de forma segura e crítica. Por tudo isto, e na minha perspetiva, é essencial preservar a filosofia e os clássicos, pois eles oferecem ferramentas únicas para cultivarmos uma vida mais refletida, sustentada por pensamento crítico, e para fortalecermos a capacidade de pensar de forma autónoma. Para ler com os mais novos sugiro a coleção de “Filosofia para Crianças” de Matthew Lipman e também a de Oscar Brenifier.
Nota de isenção
A referência a conteúdos externos tem apenas fins ilustrativos, com o objetivo de enquadrar o tema abordado. Não implica concordância, apoio ou associação por parte da Clínica Dra. Rosa Basto relativamente a opiniões, posicionamentos ou linguagem utilizados por terceiros.
Referências Bibliográficas:
American Psychological Association, Task Force on the Sexualization of Girls. (2007). Report of the APA Task Force on the sexualization of girls. https://www.apa.org/pi/women/programs/girls/report-full.pdf
Bandura, A. (1977). Social learning theory. Prentice Hall.
Comissão Europeia. (2021). Programa de Política para a Década Digital 2030. Acedido em https://digital-strategy.ec.europa.eu
Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas. (2021). General comment No. 25 (2021) on children’s rights in relation to the digital environment. United Nations. https://digitallibrary.un.org/record/3906061
Daine, K., Hawton, K., Singaravelu, V., Stewart, A., Simkin, S., & Montgomery, P. (2013). The power of the web: A systematic review of studies of the influence of the internet on self-harm and suicide in young people. PLOS ONE, 8(10), e77555. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0077555
Fardouly, J., Diedrichs, P. C., Vartanian, L. R., & Halliwell, E. (2015). Social comparisons on social media: The impact of Facebook on young women’s body image concerns and mood. Body Image, 13, 38–45. https://doi.org/10.1016/j.bodyim.2014.12.002
Mabe, A. G., Forney, K. J., & Keel, P. K. (2014). Do you “like” my photo? Facebook use maintains eating disorder risk. International Journal of Eating Disorders, 47(5), 516–523. https://doi.org/10.1002/eat.22254
Marchant, A., Hawton, K., Stewart, A., Montgomery, P., Singaravelu, V., Lloyd, K., Purdy, N., Daine, K., & John, A. (2017). A systematic review of the relationship between internet use, self-harm and suicidal behaviour in young people: The good, the bad and the unknown. PLOS ONE, 12(8), e0181722. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0181722
Organização Mundial da Saúde. (2020). Guidelines on mental health promotion in schools. OMS.
Peter, J., & Valkenburg, P. M. (2016). Adolescents and pornography: A review of 20 years of research. The Journal of Sex Research, 53(4-5), 509–531. https://doi.org/10.1080/00224499.2016.1143441
Ponte, C., Simões, J. A., & Jorge, A. (2021). EU Kids Online Portugal: Resultados nacionais 2020. Universidade Nova de Lisboa.
Tajfel, H., & Turner, J. C. (1986). The social identity theory of intergroup behavior. In S. Worchel & L. W. Austin (Eds.), Psychology of intergroup relations (pp. 7–24). Nelson-Hall.
UNICEF. (2021). The State of the World’s Children 2021: On my mind – Promoting, protecting and caring for children’s mental health. UNICEF.